Rotinas que atravessam o horizonte
Bem cedo ainda, logo depois que o sol desponta no horizonte, pego o ônibus com destino à Capital dos mineiros. Meu tanque de guerra, como já dissera aqui, é municipal, não se permitindo às nuances de um trânsito caótico, no qual se tornara os grandes centros urbanos. E Vespá, apesar do crescimento populacional e econômico, continua sendo aquele arraial por onde percorríamos quando criança, subindo e descendo os morros, nadando nos córregos e ribeirão, e dando dribles curtos nas peladinhas de final de tarde, coisa hoje impensável.
A bordo do ônibus, às vezes superlotado, vou pensando no que o destino reservará para a nossa categoria. O ônibus, um dragão de aço, sacoleja daqui e dali, espreme, pula e solta, fumegante, os gases que entorpecem os olhares e o pensar. Além das narinas. Mas logo chegamos ao primeiro destino: o metrô. Salto de um veículo para o outro em poucos minutos. O metrô também já se encontra cheio neste horário. Não há política pública para o transporte coletivo. E nem mesmo para o privado, do tal veículo particular que se multiplica de forma desproporcional à capacidade de fruição dos mesmos - e dos pedestres, principalmente - nos espaços das vias públicas.
O metrô sacoleja menos, tem um ar de coisa de gente fina, ou melhor, de país "civilizado", com as devidas aspas. Mas é só o ar mesmo, ou seja, a aparência, porque quase sempre, nos horários de pico, ele está superlotado, como acontece com os ônibus. E nós bem ali, nos espremendo uns aos outros, balançando os nossos corpos, nessa frenética dança ao som de melodias diferentes, mais próximas do samba do que do axé.
O proletariado se encontra todos os dias neste batido de ida e volta para a casa. No meu caso, além da jornada diária que ocupa o dia, ainda tem uma segunda jornada, que ocupa também a noite. Coisa comum aos professores. Ao todo, passo quase 16 horas por dia fora do bunker. Há uma disputa contínua nesta correria, para ver quem consegue um lugar para se assentar. Vale um bom descanso e até uma soneca. Mas esta é a menor disputa e o menor dos problemas. Às vezes rola um papo, uma troca de ideias, uma queixa deste ou daquele problema pessoal ou social. No geral, contudo, as pessoas permanecem em silêncio. Isto quando não estão ligadas ao celular, que adquiriu um status de acompanhante inseparável, capaz de proporcionar a comunicação com os entes, familiares ou de amizade, um pouco de música, notícia, jogos, etc. Uma pequena máquina com a cara das gerações atuais, formadas na individualidade do ser. Ou no ser individualizado. Nos meus tempos de Arraial, as coisas eram partilhadas ombro a ombro, discutidas pessoalmente, olho no olho. Não que não existissem manifestações e disputas pessoais, individualismos e tudo mais; mas era diferente. Não vou dizer que era pior ou melhor, apenas que era diferente.
Nessas idas e vindas diárias, vou observando os diferentes modos de se comportar das multidões que se juntam e se dispersam rapidamente, sem que consigam construir uma compreensão comum dos problemas enfrentados, uma teia que nos ligue a objetivos comuns. A impressão primeira que se passa é a de que está tudo errado, tudo mal planejado, ou quem sabe planejado para funcionar assim mesmo. Penso: por que investem tão pouco em transporte coletivo, caro e de má qualidade? Por que investem tão pouco em educação, saúde e moradia? Claro que nós todos conhecemos uma resposta pronta, da inversão de prioridades, voltada para servir aos interesses dos de cima. Mas será que os de cima se dão conta de que com estas políticas estão construindo o seu túmulo? E os de baixo, o que fazem para mudar? Aparentemente, passam por estes percalços por que querem, pois poderiam mudar o mundo se quisessem. Ou será esta uma leitura simplista demais da minha parte?
Enquanto isso, tudo parece invertido: o transporte coletivo é um caos, a escola pública (e a privada, nem se fala) não forma cidadãos críticos e não remunera adequadamente aos profissionais; a saúde pública funciona precariamente, o déficit habitacional é crescente, a terra continua concentrada em poucas mãos, o PIB (produto interno bruto) produzido por todos, ou pela maioria, é distribuído majoritariamente para alguns poucos. Neste quadro, compete aos políticos profissionais, a pouco espinhosa tarefa de fazer parecer aquilo que não é: tudo será resolvido nos próximos anos, dizem. Há décadas que vêm resolvendo tudo. Para eles, pelo menos.
Mas, enquanto se tenha crédito para financiar a TV LCD de 50 polegadas, ou o carro do ano - para a felicidade dos banqueiros que se entopem de dinheiro -, e ainda sobra algum para a rodada de cerveja no início do mês com os amigos; ou para a visita ao estádio de futebol, tudo se resolve na mesa de boteco, pois ninguém é de ferro. Afinal, a Copa do Mundo está chegando. Novos estádios de futebol serão entregues, qual império romano, para oferecer circo e pão, e com isso desviar a atenção do povo dos seus reais problemas.
Um dia, contudo, diziam os antigos, a casa cai, e pode ser que as cobranças adquiram outras perspectivas; pode ser que a multidão dispersa se encontre nos interesses comuns, na sua identidade comum, e queira se apropriar dos seus direitos: ao piso e à carreira para os educadores; a uma saúde decente, educação de qualidade, moradia para todos, transporte público eficiente, menor jornada de trabalho, terra para os sem-terra, menos poluição, melhor repartição do pão, e um circo de entretenimento com verdadeiros artistas do povo, e não de palhaços travestidos de deputados, senadores, desembargadores, governadores, prefeitos, presidentes e outras figuras mais.
Quando estou quase chegando ao desfecho dessa trama, desperto-me do pesadelo com o sacolejar do transporte coletivo, ônibus ou metrô. É hora de descer e caminhar rumo ao destino que nos reservaram, ainda que estejamos, quase sempre, remando contra a corrente. Eles, os de cima, são muito poderosos; até o momento em que nós, os de baixo, nos dermos conta da nossa força.
Um forte abraço a todos e força na luta! Até a nossa vitória!
P.S. Bravos e bravas guerreiros/as da Educação: muitos têm generosamente lembrado de mim para encabeçar uma chapa da oposição contra a atual direção do sind-UTE. Já disse antes, aqui, que o melhor nome para esta tarefa seria o da combativa colega Marly Gribel. Mas, a comandante Marly tem razões pessoais para não aceitar esta tarefa. Então pensei que a melhor solução seria trabalhar uma proposta coletiva, reunindo as lideranças do NDG - que são muitas - para compor uma chapa, de forma colegiada, da qual eu faria parte com orgulho, mas sem que me atribuam qualquer papel de destaque. Mesmo porque não seria uma chapa simplesmente para vencer a eleição - sabemos o quão é quase impossível vencer uma máquina profissional e azeitada para se perpetuar no poder, pelo poder. Teríamos o papel de reorganizar e unir a categoria em torno de uma proposta comum de luta, num trabalho de base longo e permanente, a demonstrar que a categoria está viva e se prepara para continuar e fortalecer a lutar por seus (nossos) direitos espezinhados e sonegados pelo governo.
***
Frei Gilvander:
Em Belo Horizonte, caveirão
para os pobres que lutam.
Cerca de 300 famílias jogadas ao relento sob uma noite
fria.
Gilvander Luís Moreira[1]
Ai
daqueles que pisam nos pobres, que tripudiam sobre a dignidade de crianças
recém-nascidas, de idosos, de deficientes e indefesos, todos
pobres!
Eu vi e nunca esquecerei. Vi
e dou testemunho.
Vi os pobres se organizarem
durante meses buscando se libertar da cruz do aluguel, que come no prato do
pobre, que é veneno para quem ganha só salário-mínimo.
Vi os cansados da humilhação
de sobreviver de aluguel dar um grito de liberdade: Pátria Livre!
Venceremos!
Vi na madrugada do dia 21 de
abril de 2012 cerca de 350 famílias sem-terra e sem-teto ocuparem um terreno que
estava abandonado há mais de 40 anos.
Vi as cerca de 1.500 pessoas
resistirem bravamente e não serem despejadas já no primeiro dia.
Via o MLB – Movimento de
Libertação nos Bairros, Vilas e Favelas – coordenar a Ocupação Eliana
Silva[2] com idoneidade, com participação ativa e paixão
pelo próximo.
Vi durante três
semanas, quase todos os dias, o povo, melhor dizendo, a comunidade que estava se
formando na Ocupação Eliana Silva, grande lutadora da Ocupação Corumbiara,
em Belo
Horizonte.
Vi a sensatez da Dra. Moema,
juíza de plantão, negar dia 21/04/2012, a reintegração de posse à prefeitura de
Belo Horizonte, porque a área ocupada não tem registro, nem matrícula e nem está
averbada. Até 1992 era terra devoluta do Estado de Minas Gerais.
Vi com tristeza da juíza
Luzia – que deveria gerar luz, mas gerou trevas –, da 6ª Vara de Fazenda Pública
Municipal, cancelar a decisão da juíza de plantão e, mesmo sem a prefeitura de
Belo Horizonte comprovar ser a legítima proprietária e ter posse do terreno, em
uma decisão ilegal mandou reintegrar a prefeitura na Posse do terreno,
autorizando a polícia a usar a força, sem oferecer uma alternativa digna para as
350 famílias. A juíza se sensibilizou ao ouvir que a prefeitura tem a intenção
de formar ali um Parque Municipal, mas não sabe ela que na região há um parque
municipal que está abandonado.
Vi, acreditando na
sensibilidade da juíza Luzia, ela pedir o cadastro das famílias e prometer fazer
Audiência de Conciliação, mas não cumpria a promessa de buscar a conciliação.
Sem deliberar sobre Embargos de Declaração, exigiu que o despejo fosse feito com
urgência. Lá não havia coisas, mas seres humanos que precisam ser respeitados na
sua dignidade.
Não vi, mas ouvi que o
prefeito de BH, sr. Márcio Lacerda e seu procurador Geral, sr. Marco Antônio,
pressionaram fortemente a juíza e desembargadores para que o despejo covarde
fosse feito sem piedade.
Vi, às 01:20h da madrugada
quando um oficial militar ligou no meu celular e, dizendo que não podia se
identificar me disse: “Frei Gilvander,
sou oficial militar.Estou chorando, não consigo dormir. Por um dever de
consciência estou ligando para lhe informar que um fortíssimo aparato repressivo
da PM cumprirá reintegração de posse e despejará a Ocupação Eliana Silva, do
Barreiro, hoje cedo. Estou temendo que possa haver derramamento de
sangue.”
Vi, após passar toda a
madrugada em claro, às 07:00h da manhã do dia 11/05/2012, a polícia militar
chegar e congelar toda a área no entorno da Ocupação Eliana Silva. Durante o dia
inteiro quem saísse era proibido de voltar e quem vinha para se fazer solidário
era proibido de entrar.
Vi chegar mais de 400
policiais da polícia militar e tropa de choque de MG.
Vi chegar ao lado da
Ocupação Eliana Silva um Caveirão – um tanque de guerra -, que eu só tinha
visto, via televisão, fazendo incursões em comunidades pobres do Rio de Janeiro.
Vi centenas de policiais
armadas até os dentes, com gás lacrimogêneo, cães, cavalaria. Muita truculência
e prepotência.
Vi e ouvi policiais dizendo
que sem-terra e sem-casa devem ser moídos no cacete.
Vi, após 2 horas de
tentativa de negociação, a tropa de choque atropelar algumas pessoas: mães com
crianças; o Paulo, que levou uma cacetada na cabeça; a Dirlene Marques
(economista da UFMG), que foi agredida por policiais ao tentar entrar na
Ocupação simplesmente para ser solidária.
Vi, aliás, centenas de
pessoas que vieram de longe para ser solidárias com as 350 famílias da Ocupação
Eliana Silva serem barradas durante o dia inteiro sem poder ter acesso ao
epicentro da operação de guerra que se desenvolvia.
Vi por várias vezes o
helicóptero da PM fazendo vôos rasantes sobre a Ocupação com metralhadoras
apontadas para o povo. Vi centenas de crianças chorarem e se abraçarem às mães
com pavor daquele “pássaro” que ameaçava atirar nelas.
Vi muitas mães serem
barradas pela polícia ao pedir para entrar na ocupação para pegar remédios para
dar seus filhos que padeciam alguma doença.
Vi o povo da Ocupação Eliana
Silva, sob a liderança do MLB, resistir bravamente de forma pacífica. Sentados
todos diziam e repetiram o dia inteiro: “Daqui não sairemos. Só se for presos e
algemados.”
Vi, com uma punhada no meu
coração, policiais, garis e funcionários da prefeitura de BH quebrarem 350
barracas de lona preta que era a única casinha que as famílias tinham construído
com muito carinho. Ao serem questionados, alegavam constrangidos: “Tenho que
cumprir ordens, pois senão serei desempregado.”
Vi, com os olhos do meu
coração, o prefeito de BH, sr. Márcio Lacerda, o Governador de Minas, sr.
Anastásia, a PM de Minas, a juíza Luiza, o TJMG e muitos comparsas pisarem,
tripudiarem, cuspirem no rosto dos pobres que têm a ousadia de não ser só força
de trabalho para as classes média e dominante, mas lutarem, de forma organizada,
para viverem com dignidade.
Vi vários veículos de a
grande imprensa ouvirem só a versão da polícia que, com a maior desfaçatez diz:
“Está tudo na normalidade. Estamos
simplesmente cumprindo ordem. O povo vai ser levado para um lugar digno...”
Isso é querer tapar o sol com a peneira. Pisar na dignidade dos pobres é
normalidade? Tão bom seria se os pobres parassem de trabalhar para seus
opressores! Cumprem ordem, sim, mas ordem injusta, imoral. Levar para “abrigos”,
que na prática são campos de concentração, é levar para lugar digno? Por que os
2 mil irmãos em situação de rua em BH preferem sobreviver nas ruas do que ir
para os abrigos da prefeitura?
Não vi, mas penso, nessa
segunda madrugada sem dormir, que os que autorizaram o covarde despejo da
Ocupação Eliana Silva, sem alternativa digna, devem estar dormindo tranqüilos em
quartos e mansões confortáveis, enquanto cerca de 300 famílias que não se
vergaram estão passando essa noite fria ao relento no meio dos escombros de onde
por 21 dias estavam vivendo felizes, em comunidade, com muita ajuda mútua,
solidariedade e espírito fraterno de luta.
Vi também a luz e a força de
tanta gente que se fez solidário.
Vi, sob uma noite fria, o
povo como ossos ressequidos clamando por ressurreição.
Vi que fizeram uma grande
sexta-feira da paixão dia 11/05/2012 aqui em Belo Horizonte com a
Ocupação-comunidade Eliana Silva, mas sei que o amor é mais forte que egoísmo e,
por isso, um domingo de ressurreição será gestado.
Vi o “presente” que as mães
da Ocupação Eliana Silva receberam: repressão. Aliás, há 15 dias uma Comissão na
Ocupação já estava planejando fazer um almoço especial para as mamães da
Ocupação Eliana Silva. Mas poderosos ofereceram fel às mães da Ocupação Eliana
Silva.
Vi clamores que interpelam
nossa consciência e os registrei em nove entrevistas que, em vídeos, estão em
www.gilvander.org.br (Galeria de vídeos). A quem não viu sugiro ver essas
entrevistas. Eu sugeri à juíza Luzia que as visse, mas ...
Vi muita coisa que me marcou
indelevelmente, inclusive, caveirão para os pobres de Belo Horizonte.
Vi e verei sempre que a luta
por libertação integral e pela conquistas de direitos humanos- e ecológicos -
continuará sempre até depois da vitória.
Belo Horizonte, às 01:10h madrugada do dia
12/05/2012, véspera do dia das mamães, expressão infinita do amor
infinito.
Um abraço afetuoso.
Gilvander Moreira, frei Carmelita.
e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
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